26 julho, 2009

Queria despir-me...


Queria
despir-me
de palavras
e gestos.
Ser só o voo
silencioso,
atento, presente
do milhafre.

20 maio, 2009

Duas vozes


Vim para a beira-mar. Ele está sentado mais atrás, na areia seca. Lê um grande livro interminável que arrasta consigo para todo o lado. Tem um daqueles chapéus de lona enfiado na cabeça quase até aos olhos, o que lhe dá um ar muito mais velho e o torna quase cómico. As calças de uma cor clara dobradas pelo joelho, a camisa aberta. Está sentado numa cadeira baixa, e por isso as pernas, grandes, fazem um ângulo, com os joelhos para cima. Percebo quando olha para mim, levanta os olhos do livro, fica uns segundos a olhar, anota qualquer coisa num papel e recomeça a leitura.
Eu brinco com a areia molhada, faço desenhos com os dedos dos pés e com os calcanhares, que são logo apagados pelas ondas. Apanho conchas e pedrinhas que brilham com a água salgada, deixo-as nas mãos o tempo suficiente para lhes sentir o peso, a forma, a textura e depois atiro-as de volta ao mar. Olho para ele de vez em quando, confirmo a sua presença, o seu olhar. Mas quase sempre estou a olhar para longe, a ver as ondas que se formam e desfazem, os milhares de brilhos que a luz faz na água, as gaivotas, a sombra das nuvens. Levo os braços ao ar, abertos, para receber o sol e a brisa, estico-me, dou voltas, agacho-me, molho as mãos e levo-as à cara, sinto o sal e o sol a entranhar-se na minha pele.
.
Vou ler a paisagem, disse ela, e deixou livro aberto, voltado para baixo para marcar a página, em cima da toalha; as nossas mãos tocam-se; trocamos um sorriso. Vejo-a ir devagar até à beira-mar; ela olha para trás uma vez, diz-me adeus, eu aceno e volto para o livro. Mas as letras deixam de formar palavras, vejo-as a tomar volume e a escorregar pela página em branco, não sou capaz de as apanhar, misturam-se com a areia. Olho para ela, está a brincar com a água, baixou-se, talvez para apanhar uma concha. As letras reaparecem na página e continuo a ler. Avanço duas linhas e desconcentro-me de novo. Ela tem um vestido de alças, leve; deu-lhe um nó, em baixo, para não o molhar; os cabelos soltos passeiam com o vento, de um lado para o outro. Olhou para mim agora, percebe-se observada e inventa uma dança, para me dizer que sabe que a vejo. Tento ler mais um pouco, consigo até encontrar um raciocínio coerente nos meus pensamentos e anoto-o numa folha que faz de marca no livro. Aproveito esta conquista para voltar a olhar na direcção do mar. Ela tem os braços erguidos sobre a cabeça, um pouco inclinada para trás, está provavelmente de olhos fechados, a receber o sol na face.
.
O sol anima-me, levo os braços acima da cabeça e deixo-os cair pelos lados. Volto-me ligeiramente, olho na direcção da areia. Ele tem o livro fechado sobre os joelhos, o chapéu caiu para trás; olha fixamente para mim. Apetece-me ir buscá-lo, arrastá-lo comigo para o mar. Sorrio, aceno-lhe.
.
Ela está luminosa, solar. Apetece-me entrar na estranha dança que ela parece ter inventado para mim. Mas sinto-me incapaz de me levantar, o meu corpo torna-se extraordinariamente pesado, como o livro enorme que leio. Ela volta-se. Aceno-lhe.
.
Quero misturar-me com ele, como me misturo com o sol, com o sal, com a brisa, com o mar, com a areia.
.
Ela vem para aqui. Deixo cair o livro, deixo o meu peso na areia, levanto-me, vou ter com ela.
.

20 março, 2009

Sedução

Há já algum tempo que observo a rapariga. O corpo que se move lenta e cuidadosamente, terminando sempre numa pose que, como direi, realça toda a sua feminilidade: o peito em riste, a coluna curvada para um lado, as ancas para o lado oposto, o pescoço ligeiramente para trás. Ao mesmo tempo, as mãos, ainda mais lentas que o resto do corpo e uma de cada vez, percorrem, abertas, os cabelos longos. Um pretexto, talvez, para levantar os braços e animar ainda mais o peito.
.
Percebo instintivamente, ao olhar em volta, para quem dirige ela estes movimentos minuciosos de sedução: o homem que conversa comigo. Vejo como ele ignora deliberadamente a rapariga e como isso faz com que os movimentos dela fiquem ainda mais intensos e presentes. Mais que uma vez reparo que ele não consegue evitar um ligeiro estremecimento do seu corpo e como controla a vontade de olhar para ela.
.
Soube logo como aquele jogo era perigoso, que o devia ter arrastado para fora daquele lugar. No entanto não o fiz. A curiosidade foi mais forte. Quis saber até onde ela iria. E ele. E eu.
.
Ele, entretanto, olha para mim, leva um copo de whisky aos lábios, ri de uma piada qualquer, continua a esforçar-se para não olhar na direcção dela. Eu continuo a observá-la e também eu me rio, por estar a ver alguém em plena acção de sedução de forma tão clara, tão evidente, tão estereotipada.
.
Serão aqueles gestos pensados, trabalhados, conscientes? Ou serão espontâneos, apenas o corpo a manifestar uma vontade? Pergunto-me, enquanto observo a graciosidade com que ela se move de uma pose para a outra, num ritmo de diva, que começo a invejar.
.
Mais tarde ou mais cedo aconteceria. Aliás, o que nunca poderia imaginar era que tivessem passado tantos anos sem que nada disto tivesse ainda acontecido.
.
Ganho coragem. É a minha vez de pedir mais um whisky. Ele brinca com as minhas mãos e com o meu cabelo, diz-me ao ouvido o que sabe que gosto de ouvir, os olhos a destilar desejo. Bebo de uma vez o conteúdo do copo. Beijo-o. Olho uma última vez para a rapariga e finalmente deixo-o. Livre.
.
Acordei, como sempre, com ele ao meu lado. Nunca soube o que aconteceu naquela noite. Mas sei que também a mim ela soube seduzir.

03 março, 2009

um homem que corre

o homem corre, corre, corre; o corpo em esforço, as pernas musculadas a avançar, os braços em movimento, a t-shirt suada, o som dos pés a cair no chão de terra, a sombra das árvores entrecortada por pequenas manchas de sol, o som da respiração, as batidas do coração cada vez mais fortes, os olhos presos apenas ao caminho em frente; o homem corre e desvia-se dos ramos mais baixos, desvia-se das pedras do caminho, percebe rapidamente por onde deve ir; e vai; o homem corre, corre, corre e depois pára; pára e curva-se, as mãos nos joelhos nus, a respiração ofegante, o coração muito rápido começa a abrandar, o suor a cair-lhe da cabeça, a escorrer pelo corpo todo, gotas salgadas de suor que deixam marca no chão de terra; o homem respira, curvado sobre os joelhos, olha em frente, acocora-se, a cabeça tomba entre os joelhos dobrados, as mãos na cabeça sentem o suor; o homem sente uma dor no peito e finalmente chora; acocorado, as mãos na cabeça, gotas de suor, lágrimas, terra, coração apertado, o corpo descansa e chora; o homem leva as mãos à face e limpa as lágrimas, tira a t-shirt que passa na cabeça e peito para tentar secar o suor, volta a vesti-la, respira fundo, levanta-se, olha o caminho em frente; recomeça a correr, primeiro devagar, depois mais depressa, o homem corre, corre, corre e transforma-se no movimento, no caminho, nas árvores em volta, no ar que respira, o homem agora é apenas um corpo em esforço a avançar, afastando os ramos, desviando-se dos obstáculos, percebendo rapidamente para onde deve ir; e vai.

26 fevereiro, 2009

Era uma manhã gelada de Janeiro


Era uma manhã gelada de Janeiro, a que entrava pela janela do quarto.
Tão gelada como a mão dela adormecida sobre o meu peito nu. Tão gelada como o beijo que lhe dei antes de a ver adormecer, gelada, ao meu lado, enquanto eu, acordado, via surgir uma manhã gelada na janela.
Era preciso fazer alguma coisa. Por isso o meu corpo deslizou para dentro da manhã gelada e saiu dali. Ao acordar, apenas uma manhã gelada de Janeiro deitada ao seu lado.

04 novembro, 2008

Dislexia

É frequente empurrar a porta
Quando nela está escrito "puxe"
Dizer "vira à direita"
Quando quero indicar a esquerda.

Por isso, meu amor, não estranhes
Se te sorrio quando me apetece fugir
Ou que fuja se me apetece abraçar-te.

Não é desinteresse ou incoerência
É apenas uma certa dislexia.

18 outubro, 2008

Para quê palavras

para quê palavras
atiro-as
(atiro-me nelas)
.
não me socorrem
.
são nada
são vento
.
só o gesto
e o olhar
valem
.
e mesmo assim
fica tanto por dizer
.
(a comunicação é um desencontro: para onde vamos?)
.

03 outubro, 2008

Samsara

E então ele disse
..............Vamos subir uma montanha
Ou fui eu que o ouvi dizer
..............Vamos subir uma montanha

A montanha estava lá. E nós a subi-la.
Onde estava a ilusão?

Extra conjugal

Olhei-me ao espelho e vi-me em criança. Os ganchos a prenderem o cabelo, a boca fechada, o olhar grave, há quem diga triste, que ainda hoje mantenho. Queria embalar-me. Ser a mãe e a criança no mesmo movimento ondulante.
(A cada dia eliminamos tempo e hipóteses, nada a fazer, apesar dos ombros ainda suaves aos lábios.)

Poderia nem ter começado. A nossa relação. Mas naquela tarde olhaste para mim de forma diferente. Toda a minha alma a nu. E nos teus olhos uma pergunta a que não soube responder.E depois veio aquela tatuagem em estrela nos braços do rapaz. Devia ter 20 anos. Ele e a namorada a comerem-se na repartição pública. Parecíamos nós, há tanto tempo, lembras-te?
(A cada dia eliminamos tempo e hipóteses, nada a fazer, apesar dos ombros ainda suaves aos lábios.)

Parecia-me boa pessoa. Tínhamos gostos em comum, e até o mesmo sentido de humor mas, as mãos estragavam tudo. (Não eram as tuas.) Lembrava-me sempre uma conversa com o velho daquele restaurante que costumávamos frequentar, lembras-te? Uma tarde ele chamou-me e disse "nunca confie num homem com dedos muito longos". Parvoíce, eu sei, mas lembrar-me do velho enquanto as mãos dele me tocavam, arrepiava-me. (Não eram as tuas.)
(A cada dia eliminamos tempo e hipóteses, nada a fazer, apesar dos ombros ainda suaves aos lábios.)

24 agosto, 2008

Abre o círculo


A lua olha-te e diz, abre o círculo.
Abre o espaço.
Sobre a sombra do carvalho velho.
Abre o corpo.
Na luz da manhã, o encontro.

Abre o círculo e penetra-o .
Diz as palavras mágicas.
Usa os gestos mágicos.
A lua espera no interior de ti, liquida e obscura, espera-te.

Abre o círculo.
Dá vida. Onde a lua te reclama.
No espaço interior que abres com as palavras mágicas
O carvalho prepara o gesto que te fará inteira."

13 agosto, 2008

Horóscopo Pagão


saturno
com passos lentos
corrige o traço
imperfeito
de deus

por entre as águas
e as serpentes
e todos os bichos
do céu e da terra
surge
imponente

de um só trago
saturno
come os filhos
come o tempo
para ser eterno

mas pã
ainda não adormeceu
e com a sua flauta
e uma gargalhada
semeia vida
pelos campos férteis

deita-se nas ervas
e sorve o sol
metade bode
calcorreia montanhas
e vales
e entrega-se
ao prazer

por isso
há prazer e solidão
luz e escuridão
na mesma e eterna dança
dos deuses
do inverno

pã e saturno
dançam com os homens
o jogo da vida e da morte
para que não nos esqueçamos
que existem
para além dos sonhos

07 agosto, 2008

Mini conto policial


O homem é um animal de hábitos, menina", disse o comissário enquanto se reclinava na cadeira. "Sente-se aqui. Então? Percebe a diferença?" A diferença era uma pequena ventoinha de mesa que girava ar fresco para a cara vermelha do homem, que limpava o suor de 2 em 2 minutos. "Tenho só umas perguntas a fazer-lhe. É rápido". As mãos gordas esgravatavam qualquer coisa numa das gavetas. "Agora não Costa, estou ocupado", deu como resposta a um polícia fardado que o esperava à porta da sala. "Aqui está". Olhou para o papel, primeiro colocando-o muito perto dos olhos, depois muito longe, retirou uns óculos não se sabe de onde e colocou-os no nariz. Analisou minuciosamente o papel. Depois olhou para o ecrã do computador e para o papel e bateu pesadamente com os dedos nas teclas. "A password" disse "nunca me lembro da password". Olhou para a rapariga e para o ecrã alternadamente enquanto murmurava "hum hum", "sim senhor" e limpava com um lenço as pequenas gotas de suor que lhe escorriam da testa. Por fim fitou a rapariga por cima dos óculos, fez uma pausa e perguntou-lhe "a menina sabe porque é que está aqui?"

08 maio, 2008

corpo texto mapa

no corpo
traço um mapa
itinerário para me (re)inventar
.
no corpo
uma leitura
imagens e palavras
onde encontro
uma gramática
o meu texto
.
no corpo
invento-me
por dentro
.
e repito
e repito
e repito
.
à procura
do corpo texto mapa
que se transforma
em cada repetição

Essaouira

o tempo não passou em essaouira, a ventosa
(só nós mudamos)
continuam lá as gaivotas
(cada vez mais sós)
e os pescadores ainda enredam as mãos no peixe
(e mudos perante o mistério das coisas)

o tempo varreu a nossa vida
(em essaouira o vento ainda sopra)
para onde vamos não sabemos mais
(e arrasta pescadores e gaivotas)
mas é lá que nos encontramos
(sempre mudos perante o mistério das coisas)

25 abril, 2008

Palavras

há palavras a mais neste mundo,
disse o sábio
por isso não temas o silêncio
e assim permanece
perante a montanha,
perante o templo,
perante as mulheres,
perante a água
(são a mesma e única coisa
o templo, a montanha, as mulheres e a água)

observa o mistério do silêncio
só ele te dará a palavra
certa, adequada, criadora.

A Louca


Diz ela "que lingua porca, mete-te na tua vida, ainda levas hoje", para a outra que do lado de lá esbraceja, rodopia, dá saltos para a frente e para trás, agarra numa vassoura que usa como uma arma, esconde-se em casa, atira-se para o chão em birra de criança e diz, diz, diz
...............diz o que os anos lhe espetam na cabeça, o que a cabeça inventa no mapa dum corpo corroído pela doença, pela indiferença, pela solidão, pela destruição, pelo desalinho, numa incomunicabilidade entre uma parte de si e a outra, numa contínua fragmentação vinda sabe-se lá de onde;
...............os olhos para lá das mãos, as mãos para lá da boca, as pernas que a levam para lá do lado de lá, de cá, do cima e do baixo, do dentro e do fora, para lá de tudo, mas sempre para dentro, tão dentro que deixa de se reconhecer, e vive apenas nos gestos e palavras de inocente provocação.

E com a sua "língua porca", a única que o corpo lhe permite e pede, vai lançando sexo pelas ruas, em imagens surreais, oníricas, "porcas".
Mas "porcos" seremos nós que ouvimos a louca e nos ofendemos com a sua "língua": ofendemo-nos, ou reconhecemos as nossas fantasias nas suas palavras?

01 abril, 2008

Na Roda

entra na roda, não temas
vem e dança toda a dança
é a dança da vida
não temas
vem para a roda da vida, a roda do fogo, a roda da roda
não temas
a tontura
a vertigem da roda e da dança
tantas mãos, tanto suor, tanto corpo
na roda, não temas
dá-te à roda, dá-te à dança
entra no ritmo
entra na roda
da vida
não temas

Aceita.

"um dia também tu serás alimento"
disse o mestre a quem o ouvia.

11 março, 2008

Pedir voo

Às vezes atiro-me. De cabeça. Sem me preocupar se vou cair, sem saber onde vou parar.
Olho em frente, a janela a chamar, o ar a tornar-se pele, as asas a pedir voo.
Posso partir-me toda, mas atiro-me. Para voar. E cumprir-me no voo.

19 fevereiro, 2008

A Carta

Às vezes escrevia-me uma carta, outras vezes enviava um postal ou uma embalagem com prendas e fotografias. Contava sempre grandes aventuras, nunca soube quais as verdadeiras e as inventadas. Mas era sempre com grande ansiedade que abria os pacotes que chegavam, atados com fio do norte e exibindo uma grande variedade de selos estranhos. Antes de abrir cheirava sempre o pacote, tentando adivinhar o que traria dentro: cheguei a receber fruta nesses pacotes! Mas as prendas mais frequentes eram perfumes, óleos, roupa, pequenas peças de artesanato e livros. Claro, sempre acompanhados de uma carta com as descrições alucinantes das suas viagens.
Quando as cartas e encomendas começaram a rarear, de início nem notei, tinha vindo para a universidade, a minha vida estava cheia de coisas novas que precisava explorar. As cartas tornaram-se um apontamento exótico na minha vida. Um Natal qualquer, estávamos a abrir as prendas e apercebi-me que já não recebia notícias dele há mais de 2 ou 3 anos, mas nem consegui ficar preocupada, pensei, "deve estar metido noutra grande aventura". Quando me casei quis comunicar-lhe, mas para onde? Ainda contactei algumas embaixadas, mas a resposta era sempre: paradeiro desconhecido.
O tempo foi passando, os filhos foram nascendo, divorciei-me, voltei a casar, voltei a divorciar-me.
De tempos a tempos relia as cartas antigas, recordavam-me a minha infância, transportavam-me para um mundo imenso que nunca conheci. Ainda as guardo todas num caixote, com as fotografias que me enviava e onde ele nunca aparecia.
Na verdade nunca o vi, conhecia-o apenas pelo que me contava nas cartas, foi sempre para mim um mistério, uma existência quase mágica, uma personagem de romance. Por isso, foi um choque quando recebi a carta. Pediam-me para ir reconhecer um corpo que eu nunca tinha visto. Fui. Ia vê-lo pela primeira e última vez. Quando o destaparam não hesitei. Tinha o mesmo cheiro das cartas. Era o meu pai.

Janela

"Estás cada vez mais cínica", disse ele, depois daquele breve silêncio que acontece quando já não há mais nada a argumentar.
Ela levantou-se, aproximou-se da janela, abriu-a, acendeu o cigarro que já tinha entre os lábios, e depois de lançar a primeira baforada de fumo, respondeu-lhe "não, estou cada vez mais velha". Enquanto o cigarro durou, manteve o olhar o mais longe possível, vagueando entre constelações cujo nome nunca conseguira decorar. Desejava que aquele cigarro ardesse a noite toda, queria perder-se nessas estrelas longínquas.
Ele levantou-se do sofá, ficou de pé alguns segundos, como se esperasse que o seu movimento a trouxesse de novo para dentro da sala, para dentro da conversa, para dentro do que sobrava dos dois."Vou-me deitar", disse ele, por fim; ela acenou a cabeça sem se voltar, anuiu com a mão num gesto leve e continuou perdida entre as estrelas, as lágrimas a torná-las ainda mais brilhantes.

06 fevereiro, 2008

Beco

Disse-me uma vez uma amiga
que num beco, a única saída é para cima!

Espelho

O pior julgamento é o que fazemos de nós próprios e não o que pensamos (imaginamos) que os outros fazem de nós.

Uma palavra, um pensamento e logo se levantam velhos fantasmas, velhas memórias.

E quando essa palavra é dita por outros, mesmo sem julgar, de repente ficamos nus, frente a um espelho onde já nada podemos ocultar.

No espelho estão todas as fragilidades, todas as forças, tudo o que construímos, tudo o que mostramos e o que ocultamos, deliberadamente ou não, conscientemente ou não.
Por isso, frente ao espelho, invento outras palavras, as do futuro.

Se possível, sem me julgar.

22 janeiro, 2008

O Bicho

Primeiro vendemos o carro. Teve de ser. A gente habitua-se aos horários dos transportes; e andar a pé faz bem à saúde, como se costuma dizer.
A casa foi a seguir. Depois de nos terem vindo buscar os móveis. Ainda estivemos uns dois ou três meses em casa dos meus cunhados, mas, é como se costuma dizer, as visitas ao fim de três dias cheiram mal.
Viemos para aqui. Vendemos o ouro da minha mãe, pedimos algum emprestado e lá deu para comprar a auto-caravana em segunda mão. Cá estamos; nunca pior, como se costuma dizer.
Nos meses em que o parque fecha, é de lei, dizem eles, vamos para o quintal do meu irmão, passamos lá o Natal.
As senhoras assistentes queriam pagar-nos um quarto na baixa, como não temos filhos era mais fácil e sempre estávamos melhor. Mas tinha de me desfazer do bicho, e isso eu não aguentava.

20 janeiro, 2008

Primeiro Dia

não vale a pena fingir:
o tempo passou

e eu passei com ele

brilha o sol do primeiro dia
e invento um tempo novo.